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Foto do escritorAna Carolina Delgado Vieira

A tecnologia da radiação ionizante para a preservação de bens culturais

Dos pesticidas às ações sustentáveis


Madeira, osso, plumária, couro, papel, cerâmica, vidro, fibra vegetal, tecido, metal, pintura, pigmento, aglutinante... Infinitas possibilidades de combinações entre materiais orgânicos e inorgânicos compõem objetos de museus, bibliotecas e outras instituições de patrimônio cultural.

Dentro de uma reserva técnica, podemos ter processos distintos de degradação físico-química. Além da sua trajetória de uso e de sua biografia, os objetos são expostos à novas condições quando ingressam nas reservas técnicas dos museus, onde precisam ter sua existência prolongada.

Considerando compostos à base de celulose e proteínas, a deterioração destes materiais consiste na quebra da estrutura de biopolímeros. Este processo ocorre quando existe a combinação de organismos (insetos, bactérias ou fungos), uma fonte de alimento orgânico (objetos) e uma condição ambiental vulnerável (ambientes úmidos, temperaturas inadequadas, sujidades).

As pragas mais frequentemente encontradas em reservas técnicas de coleções museológicas são insetos xilófagos e traças que se alimentam de materiais proteicos e de celulose como lã, tecidos, plumas e peles.

Desde o século XIX, coletores, colecionadores e profissionais de museus recorreram ao uso de pesticidas, por meio de fumigações e aplicações de produtos tóxicos, para controlar infestações de pragas em suas coleções.

Ao final do XX, o uso de pesticidas nos museus se tornou menos apropriado, pois algumas substâncias tóxicas, como óxido de etileno e brometo de metila, foram banidas por razões ambientais e pelos riscos toxicológicos à saúde humana [1].

Técnicas de manejo integrado de pragas passaram então a ser mais utilizadas pelos conservadores, para prevenir o acesso de pragas aos ambientes de guarda de acervo, assim como estes profissionais realizam ações para detectar e minimizar riscos de infestação com relação às vulnerabilidades dos espaços de guarda de acervos.

Algumas alternativas à aplicação de pesticidas têm se mostrado benéficas na remediação de artefatos, e o uso de radiação gama para a desinfecção de objetos de patrimônio cultural é um processo seguro e uma excelente alternativa aos pesticidas.

Desde o final da década de 50, foram registrados os primeiros experimentos relacionados aos efeitos da radiação ionizante no combate de agentes biológicos na degradação dos bens culturais. Na França, a partir de 1970, o programa ARC-Nucléart passou a desenvolver trabalhos em cooperação com diversas instituições culturais da Europa e resultou em uma grande aceitação pela comunidade europeia. No Brasil, as primeiras experiências foram efetivadas em 1994 e demonstraram a aplicabilidade da radiação gama para tratar documentos infectados por fungos [2].

A escolha do uso da radiação ionizante como método de tratamento para a desinfestação de acervos, quando comparado a outros métodos tradicionais, possibilita uma relativa facilidade de aplicação e eficácia imediata, não deixando resíduos químicos nos materiais tratados, podendo ser considerada uma prática sustentável e ecologicamente correta. Além disso, a radiação age em qualquer estágio do ciclo de vida de fungos e insetos, assegurando assim um alto nível de confiabilidade na erradicação dos agentes de risco biológico aos acervos, aos profissionais de conservação e restauro e ao público .


Efeitos da radiação ionizante em organismos vivos


A radiação é a propagação de energia na forma de ondas eletromagnéticas ou partículas. Ela pode ser classificada como radiação ionizante e não-ionizante (figura 1).

A radiação ionizante tem energia suficiente para promover um desequilíbrio das cargas positivas e negativas dos átomos, causando perda de elétrons e tornando-os eletricamente carregados. A radiação não-ionizante, como a luz visível, calor, ondas de rádio e micro-ondas, por sua vez, não tem energia suficiente para arrancar os elétrons de um átomo ou molécula.


Figura 1: Escala de frequência e energia das radiações [3].


A radiação gama (γ) têm alto poder de penetração (figura 2). Essa propriedade permite o processamento de produtos diversificados, materiais espessos e de alta densidade. Podemos citar como exemplos de fonte de radiação gama utilizadas em processamento por radiação ionizante o césio-137 (137Cs), atualmente em desuso em instalações de grande porte por seu risco radiológico em caso de perda de contenção do material radioativo, e cobalto-60 (60Co), Também é possível utilizar feixe de elétrons com energia de até 10 MeV que pode estar associado ao uso de raios X para viabilizar a penetração de até 15 cm, porém, a limitação pode estar vinculada ao tamanho e geometria do objeto a ser tratado. [4]



Figura 2: Poder de penetração das emissões radioativas

As ondas eletromagnéticas de alta energia e baixa frequência interagem com os componentes das células dos seres vivos provocando danos permanentes.

A irradiação gama provoca a radiólise das moléculas de água dos organismos vivos, produzindo assim radicais livres que dão origem a espécies químicas reativas: OH- e H+. Os radicais livres que possuem elétrons desemparelhados podem se combinar entre si ou com moléculas próximas. Ainda nas células dos seres vivos, estas reações podem provocar mutações genéticas ou morte celular.

Estes processos tem alta eficiência para a eliminação das pragas mais comuns encontradas em instituições museológicas, bibliotecas e arquivos, uma vez que a dose de radiação absorvida pelos objetos é capaz de romper a cadeia de aminoácidos, proteínas e DNA de insetos e fungos que estejam atacando o material a ser tratado. A partir disso, a reprodução celular destes agentes será inibida e, portanto, o agente de risco será inativado.

Estudos publicados comprovam que não há modificações significativas das propriedades físico-químicas e mecânicas da madeira, papel, couro, pergaminho, seda, algodão, lã e outros produtos como têxteis e materiais fotográficos quando a radiação gama é aplicada em doses apropriadas para combater insetos e/ou fungos [1, 5- 8]. .

Como protocolo, a publicação da International Atomic Energy Agency (IAEA) indica que doses de radiação absorvida entre 1 e 3 kGy já são suficientes para promover a erradicação de insetos. Já doses entre 6 kGy e 10 kGy devem ser aplicadas para a eliminação das espécies comuns de fungos encontradas no ambiente de guarda de acervos [1].


Como funciona um irradiador gama?


Em São Paulo, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) possui em suas instalações um Irradiador Multipropósito de Cobalto-60 do tipo compacto (figura 3). Ele está em operação desde 2004 e foi projetado e construído com tecnologia brasileira pelo Centro de Tecnologia das Radiações (CETER).


Figura 3: Irradiador Multipropósito de 60Co – IPEN-CNEN/SP


Originalmente, esta instalação foi desenvolvida com o propósito de esterilizar produtos médicos e farmacêuticos. Mas suas aplicações são muito variadas: desde modificações de polímeros, processamento de alimentos até desinfestação de obras de arte. Atualmente, existe um total de mais de 200 irradiadores gama sendo operados em diferentes países, dentre estes, 160 irradiadores são de 60Co para uso comercial [1] . No IPEN, as instalações de irradiação também são operadas com fins de pesquisa, além de desenvolvimento de processos e novos produtos.

Esta instalação do IPEN pertence à Categoria IV (figura 4) segundo a IAEA e se enquadra no Grupo 1 de acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) [1, 2].



Figura 4: Instalações de um irradiador gama de categoria IV: visão panorâmica [8]


No Irradiador Multipropósito de 60Co do IPEN, a fonte radioativa é armazenada e blindada em uma piscina com 7 m de profundidade contendo água deionizada [9, 10]. Os “racks” contendo as fontes de 60Co (figura 5) ficam armazenados no fundo da piscina e somente sobem para a superfície quando os objetos são irradiados.


Figura 5: Lápis de 60Co montados nos racks no fundo da piscina.


Durante o processo, as fontes vão para o nível da câmara de irradiação e ficam separadas dos objetos que estão sendo irradiados por placas de alumínio (shroulder). Após a irradiação, as fontes descem ao fundo da piscina, onde a água atua como blindagem das fontes de 60Co (figura 6). Atualmente, o irradiador multipropósito do IPEN possui 64 lápis de 60Co e com cerca de 350 kCi de atividade (maio de 2020).


Figura 6: Imagem ilustrativa do perfil da instalação do Irradiador Multipropósito de 60Co do IPEN.


O sistema de irradiação é totalmente automatizado por um conjunto de computadores industriais, sistemas back-up e painéis de controle de segurança radiológica por CLP. Além dos sistemas de controle citados anteriormente, a instalação conta com sistemas de monitoramento de radiação dentro e fora da câmara de irradiação e materiais de alta densidade que oferecem blindagem ao meio externo.

A câmara de irradiação tem uma capacidade máxima de 8 m3 para irradiações no modo estacionário. Devido à alta penetrabilidade dos raios gama, os objetos podem ser tratados nas embalagens de transporte, sem a necessidade de abertura de caixas ou de manipulação dos materiais (figura 7).


Figura 7: Objetos embalados em caixas de transporte para serem tratados no irradiador multipropósito do IPEN.


Vantagens do uso da técnica


A irradiação com radiação gama tem várias aplicações, além do tratamento de bens culturais. Com esta técnica, são esterilizados produtos da área médico-hospitalar, tecidos humanos usados em alo-enxertos, alimentos, beneficiamento de gemas e muitas outras aplicações.

Do ponto de vista do conservador/restaurador, esta técnica possui grandes vantagens se comparada aos meios tradicionais para se remediar casos de infestações em acervos.

Pesticidas organoclorados, organofosforados, piretróides e fumigantes como óxido de etileno, brometo de metila e fosfina são substâncias eficazes para a erradicação das pragas. Entretanto, estes compostos trazem um risco à saúde de quem os aplica e manipula posteriormente o objeto, uma vez que são produtos tóxicos persistentes e, além disso, provocam efeitos indesejáveis nas obras de arte.

Cores esmaecidas, resíduos de substâncias suspeitas, rigidez excessiva, corrosão de metais e manchas indeléveis (figura 8). Todas estas características podem indicar que pesticidas tenham sido aplicados para que pudessem garantir uma maior sobrevida aos objetos orgânicos.



Figura 8: Exemplo de objeto tratado possivelmente com hexaclorobenzeno (BHC) onde se evidenciam manchas brancas em sua superfície – Acervo Museu de Arqueologia e etnologia MAE/USP - Banco indígena de madeira (RG 7235).


O uso da atmosfera anóxia e gases inertes também é uma técnica viável para o controle de pragas em objetos. Entretanto, é um processo moroso (pode levar semanas ou meses) que depende de controle de variáveis como nível de oxigênio, densidade dos materiais e outros fatores que podem influenciar na dispersão e penetrabilidade do gás no material que está sendo tratado. Além disso, a técnica sem o devido controle destes parâmetros poderá deixar em estado latente esporos e pode não atuar na redução de microrganismos anaeróbios.

As práticas de congelamento ou aquecimento podem ser arriscadas se aplicadas em objetos já fragilizados e também é necessário obedecer a um rígido controle de parâmetros e metodologia, caso contrário colocará em risco a integridade e preservação do material a ser tratado.

A aplicação da radiação gama para erradicar uma infestação em objetos culturais é vantajosa pois a técnica não deixa resíduos no objeto tratado. A peça não se tornará radioativa, uma vez que o nível de energia envolvido na operação não é alto o suficiente para interagir com o núcleo dos átomos. É uma operação segura com tecnologia bem estabelecida fazendo com que o operador do irradiador, o conservador/restaurador, visitantes e demais pessoas que venham a manipular o objeto estejam livres de quaisquer riscos toxicológicos ou de radioatividade.

O tratamento pode ser feito na embalagem de transporte, sem a necessidade de manipulação do objeto durante o processamento por radiação. Materiais de diferentes dimensões e tipologias podem ser tratados com esta técnica graças ao poder penetrante dos raios gama em intervalos curtos de algumas horas, dependendo da extensão e tipo de contaminação e da dose absorvida de radiação necessária para a redução da carga microbiológica ou infestação.

Quando estes objetos são submetidos à radiação gama para descontaminação de agentes biológicos, não há alterações físicas ou químicas significativas em materiais como papel, pintura, couro, tecido, madeira, fibra vegetal, fotografia, plumária entre outros. Contudo, objetos compostos por vidros, madrepérolas e plásticos devem ser submetidos ao tratamento com cautela, pois estes podem ter suas características alteradas.

Devemos destacar que o efeito da radiação gama é cumulativo. Desta maneira, a irradiação de objetos de patrimônio cultural não deve ser realizada como uma prática constante. Doses de radiação baixas para o tratamento de contaminantes biológicos podem ir se somando ao longo de tratamentos sequenciais, e isso resultaria em altas doses para um objeto, provocando assim efeitos colaterais nocivos, como esmaecimento de cores e perdas de propriedades mecânicas.

No caso da irradiação gama, o processo é preciso e reprodutível acompanhado pela dosimetria que estima a dose absorvida de radiação no produto. O sistema de dosimetria é importante pois além de validar, registra e documenta e é uma ferramenta de controle de todo o processo [10].

A bibliografia é clara com relação aos limites seguros para cada tipologia de objeto, indicando valores baixos de doses que devem ser aplicados em caso de infestação por insetos ou fungos [1]. Nestes parâmetros, a eficácia da radiação gama já foi comprovada cientificamente.


Ações de conservação preventiva sempre serão a melhor solução


Práticas de gerenciamento de riscos são ferramentas eficazes e indispensáveis para uma avaliação sistemática das vulnerabilidades que podem afetar a preservação de bens culturais.

Um diagnóstico de análise de risco é importante para que a instituição de guarda de bens culturais seja capaz de identificar vulnerabilidades e definir prioridades, assim como também esteja preparada para atuar frente a emergências e mitigar impactos negativos no que se refere a estes eventos. Atualmente existe muito material publicado à disposição de conservadores/restauradores para que estes profissionais possam elaborar seus planos de gestão de risco e implementá-los em suas instituições [11].

Não poderíamos deixar de mencionar que qualquer problema concernente às infestações ativas de pragas é uma questão complexa e que está intrinsecamente relacionada a um conjunto de fatores de gestão de riscos. Ações de manejo integrado de pragas devem fazer parte do plano de conservação preventiva de instituições como bibliotecas, arquivos e museus. Suas ações são simples de serem executadas, muitas vezes de baixo custo e podem detectar situações de risco antes mesmo que ocorram perdas materiais nas coleções.

Como exemplo, ações de conservação preventiva como estas podem ser colocadas em prática e não requerem investimentos financeiros institucionais:


  • Restringir áreas de manuseio, preparo e consumo de alimentos nas áreas de acervo;

  • Capacitar os funcionários da instituição a identificar pragas nocivas e sinais de infestações ativas;

  • Elaborar uma rotina sistemática para limpezas nas reservas técnicas, exposições e outros espaços da instituição, assim como evitar o acúmulo de lixo e outros detritos que possam reunir condições favoráveis ao aparecimento de pragas;

  • Fazer um plano de vistoria de coleções (semestral ou anual) a fim de que infestações sejam detectadas. Estas vistorias podem ser feitas próximas à primavera, uma vez que dias quentes e úmidos favorecem o período reprodutivo de muitas pragas;

  • Registrar ocorrências de pragas e/ou vulnerabilidades na edificação através de planilhas, relatórios e fotografias a fim de mapear as ocorrências, detectar áreas mais fragilizadas e, no momento oportuno, investir recursos para a melhoria destes setores.


O processamento por radiação ionizante é uma técnica a ser considerada quando uma instituição tiver problemas com relação à infestação de pragas. Entretanto, ela não pode ser o único caminho viável para o manejo deste risco. As pesquisas com relação a este tema são importantes para difundir a técnica entre os conservadores/restauradores, mas ainda assim, as ações de conservação preventiva continuam sendo as melhores soluções para a garantia de uma maior longevidade às coleções.



Referências

[1] IAEA. Uses of ionizing radiation for tangible cultural heritage conservation. Vienna: IAEA, p. 53-54; 95. (2017).

[2] NAGAI, M. L. E. Estudo da utilização da radiação ionizante para preservação e conservação de filmes fotográficos e cinematográficos. Dissertação (Mestrado). IPEN, São Paulo, Brasil. pp. 32-33 (2019).

[3] https://app.planejativo.com/estudar/206/resumo/quimica-radioatividade. Acessado em 18 de março de 2023.

[4] IAEA. Gamma irradiators for radiation processing. Vienna: http://www-naweb.iaea.org/napc/iachem/Brochgammairradd.pdf

[5] JELEN, E.; WEBER, A.; UNGER, A.; EISBEIN, M. “Detox cure for art treasures”. Pesticide Outlook, v. 14(1): p. 7–9, 2003.

[6] RIZZO, M. M.; MACHADO, L. D. B.; BORRELY, S. I.; SAMPA, M. H. O.; RELA, P. R.; FARAH, J. P. S.; SCHUMACHER, R. I. “Effects of gamma rays on a restored painting from the XVIIth century”. Radiation Physics and Chemistry, v. 63, Issue 3-6, p. 259-262, 2002.

[7] TRAN, K. “Gamma irradiation for the conservation of cultural heritage artifacts from the 70’s to nowadays in France”. INAC 2013 - 11th Meeting on Nuclear Applications – XI ENAN Recife, PE, Brazil, November 24-29 (2013). Disponível em: http://www.aben.com.br/Arquivos/220/220.pdf. Acessado em 23 de maio de 2020.

[8] KAVKLER, K.; PUCIC, I.; ZALAR, P.; DEMSAR, A.; MIHALJEVIC, B. “Is it safe to irradiate historic silk textile against fungi?”. Radiation Physics and Chemistry. v. 150, p.101-110 (2018).

[9] IAEA. Radiation Safety of Gamma, Electron and X Ray Irradiation Facilities. IAEA Safety Standards Series No. SS-G-8, Vienna, Austria, pp.8-9 (2010).

[10] SANTOS, P.S. Estudo e otimização dos parâmetros de processamento por radiação gama em escala industrial considerando fatores operacionais. Dissertação (Mestrado). IPEN, São Paulo, Brasil. pp. 23-25; 27-32 (2017).

[11] ICCROM. Manual de gestión de riesgo de las colecciones (2009). Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001862/186240s.pdf. Acessado em 24 de maio de 2020.

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